Aborto: uma questão de dignidade e de saúde pública

Uma mostra na Pinacoteca de São Paulo, aberta até dia 05 de Julho, reúne mais de 100 obras da lusitana Paula Rego, entre pinturas, gravuras, desenhos e colagens. As telas da pintora pós-moderna carregam uma narrativa extremamente densa, e abordam questões como violência, jogos de poder, crueldade e a situação da mulher. Na série de telas denominada “Aborto” (1997-1999), a artista faz uma crítica aberta ao referendo que em Portugal justificou a continuação da criminalização do aborto. Nas palavras da própria artista, “na minha aldeia testemunhei como tudo se fazia às escondidas, vi a dor e a vergonha. Tantas mulheres me vieram pedir dinheiro para abortar… Por vezes, morriam de septicemia. Ou lavavam-se na praia, as entranhas saídas, como vacas esventradas”. Para José Luis Peixoto, um dos novos nomes da literatura portuguesa e admirador do trabalho de Paula, nos trabalhos que dedicou à temática do aborto, Paula faz notar que “o fim da ditadura política não foi o fim da ditadura das cabeças, das mentalidades”. Em 2007, o aborto até a 10ª semana de gestação foi legalizado em Portugal, o que ainda está longe de ser ideal.

Países que criminalizam o aborto, como o Brasil, não têm suas taxas desta prática diminuídas. Ao contrário, o número de abortos ilegais, muitos deles inseguros, é alto, bem como a taxa de mortalidade materna, decorrente das complicações deste tipo de procedimento. Segundo a Organização Mundial de Saúde, anualmente, 35 a 50 milhões de abortos são induzidos; destes, 20 milhões são abortos inseguros. Esses procedimentos causam graves complicações reprodutivas a milhares de mulheres, visto que são feitos em condições precárias, sem o mínimo de suporte técnico de qualidade. Deste modo, 70 a 80 mil mulheres morrem por complicações devido ao aborto inseguro, sendo que 95% destes ocorrem em países em desenvolvimento (World Health Organization. Unsafe Abortion). Isto é, 13% das mortes maternas se devem ao aborto inseguro. O número aumenta na América Latina, onde o abortamento inseguro é determinante de 21% das mortes maternas (World Health Organization. Unsafe Abortion).

No Brasil, o aborto é considerado crime, exceto em casos em que a gestante corre risco de morte e em casos de gravidez resultante de estupro (com bastante burocracia). O caso do feto anencefálico já foi permitido, mas depois revogado. Como resultado, o aborto inseguro é responsável por 250 mil internações no Sistema Único de Saúde, para tratamento de suas complicações, sendo a curetagem pós-abortamento o segundo procedimento obstétrico mais realizado no serviço de saúde pública. Neste sentido, a mortalidade materna por aborto inseguro é também significativa no Brasil. Em algumas cidades, o aborto inseguro está entre as cinco primeiras causas de mortes maternas.

Os riscos envolvidos no procedimento do aborto ilegal e inseguro não desestimulam as mulheres a recorrerem a ele. Sem muita precisão, estima-se que cerca de 1 milhão de abortos são realizados anualmente de modo clandestino no Brasil. A prática é realizada por mulheres jovens ou mais velhas, com ou sem condições econômicas de pagar pelo procedimento em clínicas clandestinas, casadas e solteiras. O aborto não conhece idade ou classe social, mas as mortes decorrentes dele sim.

Afora este panorama que coloca o aborto como um problema de saúde pública, existe toda a discussão que envolve o direito da mulher de decidir sobre o próprio corpo. A imposição de uma gravidez não desejada viola o direito à dignidade, autonomia reprodutiva, integridade mental e o direito de não ser submetida à tortura ou tratamento desumano, cruel ou degradante. A imposição de gravidez às mulheres é internacionalmente reconhecida como sofrimento mental equivalente à tortura, como decidido pelo Comitê de Direitos Humanos da ONU no caso K.L v. Peru (Communication No. 1153/2003: Peru. CCPR/C/85/D/1153/2003).

As mulheres da série “Aborto”, de Paula Rego, não são vítimas. Não são apenas personagens passivas que se queixam da fatalidade de um mundo adverso. Em seus rostos está presente a força altiva de um olhar de determinação, de desafio e de dignidade. Algumas delas encaram o observador. São mulheres que enfrentam a hipocrisia de uma sociedade que insiste em tratar o aborto como um tabu religioso e condená-lo à clandestinidade. Esse enfrentamento é vitorioso: elas estão exercendo o direito que têm sobre seu próprio corpo.

Mari

Fontes:

CABRAL, P. C. F.; RODRIGUES, S. C. I. “O sexual e o político na obra de Paula Rego”, disponível em http://www.intermidias.com/txt/ed9/osexual_eo_politico.pdf - acessado em 15/04/11

DREZETT, J. “Abortamento como problema de saúde pública”. Resumo da conferência apresentada no Painel de Descriminalização do Aborto realizado em Brasília e promovido pela Secretaria Especial de Políticas para Mulheres em 07 de junho de 2005.

PEIXOTO, J. L. (2011) “Para imaginar histórias” Revista Bravo! Edição 164. Páginas 76-79.



Colonialismo e pós-modernismo

            A história que conhecemos é a dos vencedores. Ela é contada por aqueles que sobrevivem à batalha, que vencem para levarem sua versão e ideais adiante. A guerra não tem regras. A lógica da guerra não admite regras. Toda guerra é uma disputa de poder. O europeu sabia porque estava aqui, sabia o que queria encontrar. O europeu já estava em guerra.

            Os silvícolas não faziam idéia do que os encontrava. Mas em pouco tempo perceberam que teriam de lutar por suas vidas. O domínio envolvia espada e cruz. Quem não era eliminado pela espada, era subjugado pela cruz. Pobres selvagens. Não sabiam que guerra não tem hora. Nem para chegar, nem para acontecer. O europeu combatia à noite. O silvícola tinha muitas regras, regras que não cabiam em uma guerra.

            Em uma guerra, determinação e tecnologia fazem diferença. Uso a palavra determinação porque ganância e ambição me soam muito simplistas, como se houvesse certo e errado. O homo sapiens eliminou o homo neandertalensis, por que o europeu não poderia eliminar o indígena?

             Em termos de tecnologia, a forja do aço, o cavalo, as armas de fogo, ainda que simples, faziam uma diferença imensa. As doenças dos brancos eram uma arma tão ou mais mortal que suas espadas. O que nos faz humanos? Lamentar pelos indígenas? Discordo. Não tem nada mais humano do que seguir em direção aos seus objetivos. Os colonizadores sabiam disto.

             O modernismo nunca se concretizou para todos? Não posso afirmar com certeza, mas posso dizer que se concretizou para a maioria. Inclusive para os silvícolas. Estes sentiram mais concretamente os resultados do que se pode imaginar. Do ponto de vista antropológico, fizeram o papel de objeto. Não podemos nos esquecer também que grande parte dos colonizadores era a escória em seus países, dispostos a fazer o serviço sujo nas colônias.

            O europeu encontrou nas invasões a possibilidade de amplo financiamento para suas atividades, assim como os gregos o tiveram durante sua época mais próspera, a custo da liberdade de outros. Ter quem fizesse os trabalhos mais árduos sem praticamente nenhum custo é que permitiu aos europeus vivenciarem seu período mais fértil.

            A única coisa que percebo de diferente nos modelos de dominação mais recentes é que estes são mais inteligentes. Ao invés do conflito armado, as guerras são travadas no campo das idéias, cabendo às armas fornecerem suporte às canetas apenas nos casos em que as idéias fracassam.

            Como toda ação deste tipo parece carecer de uma justificativa aceitável, a sociedade da época engoliu a idéia da igreja que os povos pagãos eram ausentes de alma, e que só existiam dois caminhos, a extinção ou a conversão. Os sentimentos de amor e de culpa burgueses não permitiriam tais atrocidades, salvo uma forma de libertação com a qual pudessem se confortar. Quer um aval melhor para matar do que uma autorização escrita de um papa?

            No mundo, não há espaço para todos. Na lógica do capital, que estava em plena ascensão, o que cabia no mundo era o que podia por ele ser explorado. E isso segue até hoje desta forma. O alternativo, na cultura e na economia, está muito mais ligado à sobrevivência do que ao sucesso. E quando coloco o alternativo, digo o alternativo mesmo, não o pseudo-alternativo que ensaia uma crítica à mão que o alimenta, que se comove com a mesma facilidade com que se conforma.

            Então como ficamos nós? Nós somos descendentes de europeus, mas não somos europeus. Se baixarmos a cabeça, viramos vassalos. Se nossos antepassados vieram para cá porque não havia mais espaço para eles nas metrópoles européias, então por que aceitarmos as imposições das mesmas? Não sejamos mais vassalos. E não nos preocupemos com os modelos externos. Podemos escrever a nossa própria história. O que demanda desenvolvimento e força para mantermos tal posição, ações necessárias em um mundo em constante guerra.

            Em tempo: para aqueles que não gostaram da linguagem, precisam se desvencilhar das amarras da forma, pois estas são muito boas para ensaios plenamente científicos, mas nem sempre atendem à necessidade de comunicação de um texto para blog. Além disto, encarem como uma maneira de romper com essa formalidade modernista européia e um caminho para o novo. Já para aqueles que não gostaram do conteúdo, recomendo seriamente saírem de sua zona de conforto e encararem a vida.

Rafa

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